Na minha época de escola, sempre tive pânico das outras crianças. Os primeiros anos foram terríveis: muito bullying (chutes nas pernas, puxões de cabelo, ameaça de me jogarem no chão, etc), professores despreparados, falta de acessibilidade e desconhecimento generalizado. Eu me lembro que não podia brincar na piscina nem no parquinho. Restava a mim, brincar sozinha na areia – local considerado seguro pela escola. Em outros casos, ficava sozinha na sala de aula ou esquecida após a sessão do cinema. Nessa época, duas pessoas foram anjos da guarda: Márcia e Rosélia. Rosélia era faxineira da escola. Até hoje mantemos contato. Ela sempre cuidou de mim. Sempre que me encontrava sozinha, seja na sala de aula ou na areia, deixava a faxina de lado e vinha me fazer companhia. Engraçado isso! A faxineira tinha muito mais psicologia que a professora. Márcia, por sua vez, era professora do antigo pré-primário. Nossa, a idade pesou!
Sei lá qual termo se usa hoje. Pulemos essa parte. Era ela quem sempre me encontrava, aos prantos, esquecida no escuro do cinema. Para me alegrar, além de colo, sempre me dava um stick de morango. Essa fase na escola me fez ter certo medo de me aproximar das crianças. Quando virei cadeirante, aos 12 anos, morria de medo de me jogarem da cadeira. Os anos se passaram e nunca deixei meus priminhos, hoje, dois belos garotões de 18 aninhos, empurrarem minha cadeira de rodas. Só percebi esse meu defeito há poucos anos, numa revelação de amigo secreto. Meu primo disse que sua amiga oculta não o deixava empurrar a cadeira de rodas. Com isso, resolvi mudar meu jeito de lidar com as crianças.
Com o passar dos anos, acho que fui me tornando uma pessoa melhor. Aprendi a lidar com as agruras da vida de forma otimista e didática. O bom humor, a vaidade e a simpatia, sempre acompanhados de um belo sorriso, foram quebrando barreiras e abrindo os caminhos. Sei lá de onde virei a “Tia Adriana”. A cadeira de rodas por si só é quase um kinder ovo para atrair a criançada! Se for motorizada então... Não há como escapar de uma demonstração ou voltinha no colo. Os olhinhos brilham e a mente fervilha.
Eis que surge a grande dúvida: o que responder quando uma criança questiona o por quê de eu estar na cadeira de rodas? Essa pergunta é clássica! Não sou nenhuma entendida em crianças, mas sei que respostas científicas, nessas horas, não ajudam em nada! Desviar o assunto? Piorou! O jeito é rebolar e responder a verdade de uma forma inteligível e didática para a criança. Nos últimos dois finais de semana, passei por algumas situações onde a criançada me fez exercitar a criatividade e a rapidez. Vamos aos casos!
MADRINHA, VOCÊ NASCEU NA CADEIRA DE RODAS?
Estava no casamento do meu primo quando minha afilhadinha de três anos me surpreendeu perguntando se tinha nascido na cadeira de rodas? No primeiro momento, pensei: xiii, e agora? Expliquei a ela que não. Disse que quando era pequenininha, fiquei doente e minhas pernas ficaram fraquinhas. Já pensaram que caos cerebral seria comentar sobre pólio, vacina, lesão medular com ela? Ela logo retrucou: “Por que? Você não comeu direito”? Essas crianças inteligentes que dão nó em pingo d’agua... Uma tempestade cerebral se passou pela minha cabeça. Aproveitei a deixa e respondi que sim. Comentei sobre a importância de comermos verduras, frutas e tudo o que nos deixa fortes. Satisfeita com a resposta, ela finalizou com a pérola: “que chato, madrinha”!
Tenho me esforçado para mostrar à minha afilhada e às crianças que convivem comigo que cadeira de rodas é um acessório da pessoa. O fato de não conseguir ficar em pé e andar como muitas pessoas não impede que eu tenha uma vida normal. Aproveitei minhas férias em Sampa para comprar uma roupa de Barbie da Branca de Neve. Acho lindo aquele modelo. Com isso, minha Barbie cadeirante virou princesa. Minhas priminhas já sabem que princesas e príncipes nem sempre andam. Alguns deles desfilam em cadeiras de rodas. Já dei uma aulinha didática para os priminhos mais crescidinhos sobre como empurrar a cadeira de rodas sem deixar o cadeirante cair ou passar sustos. Faço as simulações com a boneca e salvo minha pele na vida real. Risos. Mas acho que agindo assim contribuo para que cresçam sem preconceito em relação às pessoas com deficiência.
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POR QUÊ VOCÊ TÁ AÍ?
Aniversário de criança é sempre um prato cheio para as perguntas. Eu me senti quase uma Xuxa no aniversário do sobrinho do meu namorado. Três crianças mexeram comigo, fora as outras que só me olharam de cima embaixo.
A primeira delas parou perto de mim e fez aquela conferência visual. Dei um sorriso e ela saiu correndo. Pouco depois, voltou com uma flor e me deu de presente. Fofa demais!
A segunda criança era um catatauzinho de uns três aninhos. Vendo aquela cadeira de rodas gigante para seu tamanho, logo perguntou: por quê você está aí? Simplesmente, respondi que minhas pernas eram fraquinhas e ele foi embora todo satisfeito.
A última ficou me cercando a festa inteira. Só trocávamos sorrisos. Quando se aproximou mais, quebrei o gelo elogiando seu cabelo. Aí a língua pulou da boca. Ela queria saber qual era meu parentesco com o aniversariante. Quando comentei que era namorada do tio dele, ela fez aquela cara de espanto e disse: “ele é cego”! Expliquei a ela que, mesmo parecendo um pouco estranho, dá muito certo um namoro entre uma cadeirante e um cego. É como se fôssemos Fiona e Shrek.
Sapríncipe, não me mate com a comparação! Mesmo sendo um pouquinho diferente do padrão, não deixamos de ser princesa e príncipe. Ela se satisfez com a explicação e saiu toda feliz.
Enfim, acho que o segredo nesses casos é responder a verdade de forma simples e clara. Muitos pais só faltam cavar um buraco no chão e se esconderem quando a criança faz uma pergunta desse tipo. Costumam até xingar o pequeno e tirá-lo de perto. Felizmente, em contrapartida, muitos já incentivam o contato e ajudam a minimizar o preconceito que ainda insiste em nos judiar. Bom demais da conta! |